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26 de Abril de 2024
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    SCHADENFREUDE BUROCRÁTICO-ADMINISTRATIVA

    Schadenfreude (shadenfroide) é uma palavra em alemão utilizada para indicar a sensação de prazer provocada pelo sofrimento alheio. Possivelmente, é o resultado do sentimento de inferioridade ou impotência individual: a desgraça alheia produz uma compensação psicológica, que é experimentada como um equivalente a um evento positivo.
    Refiro-me à schadenfreude burocrática para indicar a satisfação experimentada pelo sujeito encarregado de um procedimento burocrático quando o desenvolvimento das formalidades inviabiliza a satisfação de um interesse alheio. Veem-me a cabeça três casos emblemáticos, que são os maitres de restaurante, as atendentes de consultórios médicos e os empregados de companhias aéreas. Em tantas ocasiões, a chegar num restaurante sem ter feito reserva prévia, vislumbro nos olhos, no tom de voz e na expressão corporal do maitre a enorme satisfação de informar-me que poderei ser atendido depois da meia-noite. Em outros casos, a atendente do médico não consegue disfarçar a satisfação de informar que o doutor está atrasado duas horas, teve uma operação de emergência, o senhor pode sentar e esperar. E há os casos lamentáveis em que, ao chegar no aeroporto, o atendente nos informa com um prazer incontido que o seu voo foi cancelado, o senhor foi acomodado no próximo, que parte daqui a quatro horas.
    Mas o que motiva essa meditação é a schadenfreude burocrático-administrativa, que se desenvolve ao interno do aparato estatal. Há muitas décadas, havia uma personagem de Jô Soares que se divertia em negar o recebimento de requerimentos dos particulares por ausência de preenchimento de formalidades irrelevantes. Num quadro clássico, a personagem de Jô Soares sopesava a pasta do cliente e dizia que estava muito leve, que certamente não continha algo como a certidão de nascimento dos irmãos do tio-avô do requerente. Os exageros dessa representação cômica não afastavam o retrato de uma realidade que permanece existindo ao longo do tempo.
    Todos nós, cidadãos, experimentamos continuamente essa situação no âmbito das repartições administrativas. Não se trata apenas da exigência de formalidades inúteis, de informações desnecessárias, de documentos irrelevantes. O problema mais sério é a clara satisfação psicológica que acompanha a atuação dos agentes administrativos. A denegação do pedido ou do seu próprio processamento é pronunciada com satisfação pelo agente. Qualquer argumentação sobre a finalidade a ser atingida, sobre a razoabilidade ou a proporcionalidade é tomada como uma manifestação de insubordinação do particular, a quem incumbe recolher a sua frustração e retirar-se humildemente da presença da autoridade.
    Alguém poderia argumentar que a schadenfreude burocráticoadministrativa apresenta peculiaridades próprias e escapa ao conceito próprio. No caso, o agente administrativo atua direta e concretamente para produzir a situação de infelicidade alheia que lhe propicia o prazer próprio. Mas isso não vem ao caso para este artigo. Porque o problema não é o diagnóstico psicológico ou sociológico da questão. O fundamental reside na incompatibilidade das soluções práticas geradas pela burocracia administrativa em vista dos valores jurídicos fundamentais.
    O Estado – e todos os seus agentes – são um instrumento de realização dos valores fundamentais. A burocracia é uma solução para padronizar os procedimentos e facilitar as decisões, mas sempre tomando em vista a primazia do cidadão. O indivíduo não é um obstáculo à tranquilidade da vida administrativa. É a razão de ser da existência dos serviços estatais. O servidor público serve aos interesses de cada um dos indivíduos e sujeitos privados que compõem a Nação. Não serve a si próprio, nem às decisões do chefe imediato nem à vontade das autoridades políticas.
    Schadenfreude é um desvio psicológico, que revela as vulnerabilidades psicológicas individuais. Alegrar-se pela desgraça alheia é algo deplorável. Mas a schadenfreude burocrático-administrativa é muito mais do que isso. É uma violação à ordem jurídica, um insulto à estruturação democrática do poder estatal. É um desvio institucional cuja eliminação somente pode ser obtida por meio da afirmação permanente da relação de dependência do Estado em face da Nação. O cumprimento das funções administrativas envolve grandes decisões e providências estruturais. No entanto e em nível individual, o essencial é a solução concreta dos
    problemas mais comezinhos de nossa vida, que dependem rotineiramente do funcionamento de serviços estatais. É necessário resolver os grandes problemas de infraestrutura no Brasil. Mas, tão importante quanto isso, é eliminar a schadenfreude burocrático-administrativa e assegurar a solidariedade entre as instâncias públicas e os sujeitos privados.


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    Informação bibliográfica do texto:

    JUSTEN FILHO, Marçal. Schadenfreude Burocrático-Administrativa.
    Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n.º 88, junho de
    2014, disponível em http://www.justen.com.br/informativo, acesso em [data].

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/schadenfreude-burocratico-administrativa/248268700

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